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Eduarda Alice Santos (24 Out. 1958 - 20 Jan. 2023)
Eduarda Alice Santos uma ativista a não esquecer
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Eduarda Alice Santos (1958-2023) envolveu-se inicialmente na primeira associação trans em Portugal, a ªt. - Associação para o estudo e defesa do direito à identidade de género, fundada em 2002 (formalmente extinta em 2007) pelas pioneiras Jó Bernardo e Andreia Ramos. Foi ali que conheceu aquela que seria a sua companheira de vida ao longo de mais de quinze anos, Lara Crespo, graças à qual – dizia - iniciou a sua transição.
O ativismo público de ambas, e as críticas que publicamente se atreveram a dirigir ao corpo médico (do qual continuavam dependentes para a transição) e suas práticas, não foram bem acolhidas pelo mesmo. Além do que já tinham em comum, Lara e Eduarda passaram a partilhar mais um aspeto: foram duas das pessoas que durante mais tempo – 8 anos (Eduarda) e quase 10 (Lara) – foram entravadas pelo sistema médico nos seus processos de transição, de uma forma que as futuras leis “de identidade de género” viriam mais tarde a proibir, ao estipularem um tempo limite de dois anos para a conclusão de qualquer processo. As represálias exercidas pelo corpo médico não silenciaram, em nenhum momento, as suas críticas públicas.
Eduarda e Lara participam, ainda pela @T., na primeira Marcha do Orgulho LGBT do Porto, criada em resposta ao assassinato de Gisberta Salce Júnior, mas a associação seria extinta pouco tempo depois. Em 2007, integram o coletivo Panteras Rosa, criado em 2004. Durante este período, encontraram nas Panteras uma plataforma para desenvolverem uma expressão trans autónoma, dando voz ao podcast então emitido regularmente pelo coletivo, o programa “Garras de Fora”, grandemente dedicado ao tema da transfobia.
A partir de 2005, as Panteras Rosa envolvem-se numa iniciativa internacional que decorria anualmente em Marselha, França, as Universidades Euromediterrânicas das Homossexualidades. Em 2006, Lara e Eduarda participam também no evento, apresentando o filme, correalizado por Jó Bernardo e Jó Shdelbauer, sobre o assassinato de Gisberta, na denúncia do qual se empenharam igualmente, juntamente com Jó Bernardo, Lara Crespo e Stefan Jacob, entre outras pessoas e ativistas trans de primeira hora. É aí, a partir de 2007, que as Panteras Rosa entram em contacto com o grupo Guerrilla Travolaka e outros coletivos trans catalães e de outros pontos da Europa, que viriam a estar na origem daquela que veio a ser conhecida como a campanha STP2012, Stop Patologização Trans, em torno de um objetivo hoje cumprido – mas que à altura parecia impossível – a despatologização das identidades trans nos principais documentos médicos de referência internacional.
Em 2009, as Panteras Rosa iniciam a versão portuguesa da campanha, com incompreensão inicial - e mesmo oposição expressa de alguns setores - da generalidade do movimento LGBT (à exceção de Jó Bernardo, que a defendia). Apesar de um distanciamento inicial face à campanha - que viam como podendo ameaçar o acesso aos cuidados médicos comparticipados, desmistificada essa questão - Lara e Eduarda aderem à campanha no ano seguinte. Contudo, em 2011, abandonam as Panteras Rosa para fundar o GTP – Grupo Transexual Portugal. A adesão do GTP à campanha STOP Patologização TRANS Portugal - STP2012 - contribuiu grandemente para ultrapassar a desconfiança do restante movimento lgbt português relativamente à campanha e à perspetiva da despatologização e autonomia das identidades trans. Dois anos depois, a campanha era já dinamizada por um conjunto amplo de coletivos. Além das Panteras Rosa e do Grupo Transexual Portugal, em 2011, a STP contava com o envolvimento ativo do GAT – Grupo Português de Activistas sobre Tratamentos de VIH/SIDA Pedro Santos, do Portugalgay.pt, da Opus Gay, do SOS Racismo, da UMAR – União Mulheres Alternativa e Resposta, do Poly Portugal, da não te prives – grupo de defesa dos direitos sexuais, e do Caleidoscópio LGBT.
Foi no contexto da campanha STP2012, que o GTP e as Panteras realizaram conjuntamente em Lisboa, frente à estátua do Dr. Sousa Martins, a ação “Oração das Trans-Tornadas” (link nos comentários), em 2012. Meses antes, o GTP realizara uma tertúlia pública em Lisboa com o título “Policiamento do Género e a Luta Transexual” (link nos comentários), que descreve como a “primeira iniciativa pública” de debate “onde as pessoas transexuais e activistas possam falar livremente sobre o tema da despatologização sem a presença sempre policial de médicos e/ou psicólogos.”.
Foram muitas as colaborações do GTP com outros coletivos e entidades ao longo dos anos. Também com múltiples investigadories, como a socióloga Sandra Saleiro - autora da tese pioneira Trans géneros: uma abordagem sociológica da diversidade de género (link nos comentários) -, de quem ficaram amigas. Com a companhia KARNART C. P. O. A. A., com cujos artistas Lara e Eduarda estabeleceram uma amizade que ficou. Em 2014 participaram no projeto “Aguarela”, do fotógrafo Pedro Medeiros, outra amizade que permaneceu. Escreveram para publicações feministas, publicaram blogues de temática trans, criaram grupos de partilha sobre a temática em redes sociais. Ambas, mas a Eduarda de forma mais regular, colaboraram durante anos com o portal PortugalGay.PT (o link para o texto "PORTUGAL, 20 anos depois" nos comentários).
Um dos contributos mais relevantes do GTP foi o trabalho de estudo e compilação que informou o processo legislativo de aprovação da primeira Lei Trans, em 2011, já então erradamente referida como “lei de identidade de género” mas que, apesar de passar a permitir a mudança dos documentos de identificação independentemente do processo médico, era ainda muito limitada (não era uma lei de reconhecimento de autonomia, nem despatologizadora, colocando ainda a exigência de obtenção de um documento médico para viabilizar a alteração de documentos) face à segunda lei, a atual, que seria aprovada em 2018 e em cujo debate e reivindicação também se empenharam. Um objetivo ainda hoje por cumprir, e que as primeiras ativistas trans portuguesas que aqui fomos referindo sempre exigiram até ao presente, foi a inclusão da identidade de género como fator de não-discriminação no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
O GTP foi, ao longo de toda a sua existência, uma das entidades organizadoras da Marcha do Orgulho de Lisboa, mesmo quando as limitações financeiras e pessoais de ambas impuseram uma participação à distância. O coletivo participou na generalidade das iniciativas unitárias do movimento trans autónomo desde a sua génese, recusando posições sectárias, ou de apagamento ou desprezo pelos demais coletivos e ativistas trans, pois acreditavam na necessidade de um movimento autónomo forte na sua diversidade e capacidade de alianças. Após a morte de Lara Crespo em 2019, e apesar de continuar a publicar em nome do GTP, que não queria ver extinto, a Eduarda voltou a integrar o coletivo Panteras Rosa, participando das suas reuniões e contribuindo significativamente para o seu debate interno. Manteve viva a memória de Lara e do GTP, publicando registos históricos com frequência, preservando o seu arquivo comum e, em mais de uma ocasião, intervindo publicamente contra deturpações e apropriações abusivas do seu legado, como quando a página de Facebook Guilhotina.info, logo dois dias após a morte de Lara, que era assumidamente transfeminista e explicitamente solidária com a causa das trabalhadoras do sexo, se atreveu a publicar um texto que lhe atribuía uma suposta posição de defesa do abolicionismo do trabalho sexual, alegação inteiramente falsa e dolosa, com a qual a Eduarda, em pleno e mais do que recente luto, se sentiu extremamente ferida. A sua preocupação com a preservação da memória histórica estendia-se ao conjunto do movimento trans, tendo por exemplo participado recentemente, com o texto “Momentos do arranque trans”, na publicação DeMemoria (link nos comentários), da associação gentopia - Associação para a Diversidade e Igualdade de Género.
Sempre solidária, com um humor bestial, dizendo sempre o que pensava, para bem e para mal, com uma honestidade e crueza por vezes estonteante, muitas vezes casmurra e cabeça-dura, caraterísticas que reconhecia e cultivava, mas sempre com vontade e capacidade de evoluir através dos argumentos, a Eduarda deixou-nos na manhã de ontem, dia 20 de janeiro de 2023, aos 65 anos, após sofrer uma paragem cardiorrespiratória. Para muites de nós, não desapareceu apenas uma companheira ativista de primeira hora, mas uma amiga. Juntamente com a Lara, partilhámos com a Eduarda não somente causas, mas também pobreza e precariedades. A Eduarda recordava muitas vezes, de forma divertida (embora na altura não tivesse piada nenhuma), as muitas vezes como, no início dos anos 2000 – em que qualquer de nós se encontrou em situações de aperto financeiro ainda maior do que era habitual – nos juntávamos na primeira casa onde vivi autónomo, em Lisboa, para partilharmos refeições de “arroz com puré de batata” ou mesmo de “batata com puré de batata”. Era o que havia, e o que havia era para partilhar. Apesar das suas vidas terem sido muito difíceis, sempre recusaram lugares de “vítima” ou de autocomiseração. Entre nós nunca se falou de “apoio” ou “ajuda”, somente de partilha e de amizade, e tudo o que nos demos mutuamente foi retribuído a todos os níveis. Estiveram lá sempre que eu próprio caí. Ontem perdemos mais um pedaço de nós, uma amiga e ativista incontornável e por direito próprio, que recordarei sempre com carinho. Estará presente, através do seu próprio legado, em tudo o que fizermos futuramente e nos nossos corações.
Sérgio Vitorino
21 de janeiro de 2023